Sobre cuspir fogo como Xangô

CRÍTICA

Reflexões e expansões a partir do espetáculo Bola de Fogo

por Soraya Martins*

A primeira vez que comi o acarajé do Osório foi no FIAC-Festival de Artes Cênicas da Bahia em 2018. Naquela ocasião, fui já bola de fogo e me emaranhei no tempo espiralar junto com ele, seu pai, as baianas do acarajé, Cíntia Santos, sua mãe, Leda Maria Martins, os de antes-os de agora-e-os-que-estão-por-vir. Nas cruzas e encruzas que Exu propulsionar, desenvolve, mobiliza, faz crescer, transforma e comunica; nas cruzas e encruzas do Senhor Tempo, me deparei com Osório-baiana do acarajé cinco anos depois. Na verdade, me deparei com seu corpo e o corpo de Cíntia como encruzilhadas discursivas, em que cada movimento colocado-pensado em cena representa uma definição de suas identidades como indivíduo, como pertencentes a uma coletividade e como elo na corrente a tradição, que se movimenta e se recria constantemente.

Em 2018, lá no FIAC, escrevi o seguinte: Mão na massa para fazer acarajé, reinventar a existência com dignidade, seguir na possibilidade de fazer teatro e cuspir fogo como Xangô. O espetáculo Bola de Fogo performatiza a vida do ator Fábio Osório, que trabalha como baiana de acarajé, registrado e com carteirinha de baiana. Quarenta e cinco minutos é o tempo que o ator leva para preparar, em cena, a massa do acarajé. Nos entres do preparo, Osório leva para o tabuleiro-palco a história de como decidiu começar a vender acarajé, história de necessidade, ganhar dinheiro, pagar as contas; história que se parece com a de outras baianas, ou melhor, tantas pessoas negras. É do contar a partir da simplicidade que emerge a potência do texto dramático, que mescla o cotidiano a uma sofisticação de pensamento que diz dos modos outros de inscrição dos saberes ancestrais, saberes que ligam antes-agora-depois-e depois-ainda; e se ligam às lutas das mulheres negras pela liberdade e à luta de Osório, enquanto cidadão e personagem-protagonista do seu próprio teatro, na reinvenção do tempo para continuar (re)existindo. O texto tem epistemologia preta, axé lunar, é palavra ancestral que fica no ar e vai constantemente ao passado, extrai dele a emergência do novo e se recria no atravessamento do tempo. Palavra que sai da boca e do corpo, portal e índice de conhecimento, e que se performantiza também na comida, forma de afeto emancipatório, de alimento da fome, das subjetividades, das memórias, das existências e da (re)criação.

Em 2022, aqui no Mirada, olhando para trás com olhos de amanhã, no agora, digo do percurso curvilíneo que o espetáculo Bolo de Fogo faz, um percurso que ginga criativamente e dá a ver a arte negra como um conceito operacional não estável, um modo não totalizante de pensar, interpretar e organizar novas visões de mundo. Mais do que ser uma “obra aberta”, a la Umberto Eco, antes, Bola de Fogo, e aqui me referenciando na noção de encruzilhada da Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado do Jatobá e pesquisadora das bandas de Minas-Mundo, Leda Maria Martins, é um espaço de conhecimento curvilíneo tecido por múltiplas dobras discursivas…

Cintia Santos, a interprete de Libras, não é só uma interprete de Libras. Ela, ao longo desses anos, se fez ainda mais performer junto com Osório, traduzindo através de gestos, expressões faciais e corporais, tanto para os não ouvintes quanto para aqueles que ouvem só o que querem (“ouvidos de mercador”), um teatro que realça a diferença como traço distintivo, rompendo a figuração e representação estereotipada sobre os corpos negros pelo acréscimo de outras fabulações possíveis. Aqui, a tradução não é traição, como assinala o provébio italiano, (traduttore, traditore). A tradução da tradição e dos corpos negros em diáspora feita por Cintia e Osório joga luz numa comunicação que se instaura no entrelugar da ilusão semiótica, típica da Encruzilhada, e dá a ver a negrura como um signo negro cênico plural.

Bola de fogo é sobre o Tempo.

Sobre o fogo oculto de Xangô.

Sobre “quebrar, inchar, transformar, fritar e comer”.

Sobre mais do que resistir, criar existências.

Enfim, é sobre, também, o princípio dos teatros negros se definirem (ou não, adoro a antidefinição de Salloma Salomão: Um teatro é negro quando é capaz de virar as costas e tapar os ouvidos a tudo que se espera de um Teatro Negro) dentro do contexto estético.

*Soraya Martins é crítica, atriz, pesquisadora de teatros e curadora independente. Participou da curadoria do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac (2019,2021 e 2022), e do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua, o FIT-BH (2018). Doutora em literatura, pesquisa as estéticas contemporâneas negras e seus processos de sociabilidade e fabulação em cena.