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CATÁLOGO 2022 - MIRADA - FESTIVAL IBERO-AMERICANO DE ARTES CÊNICAS

9 a 18 setembro de 2022

A fim de propiciar semelhantes trocas, refletindo sobre heranças comuns e identidades particulares, o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas mantém o objetivo de apresentar experiências cênicas dos países da América Latina, Portugal e Espanha, favorecendo diálogos entre seus criadores e apresentando ao público suas produções.

 

Transposições criativas

Danilo Santos de Miranda – Diretor do Sesc São Paulo 

Avistar horizontes tem o potencial de despertar sentimentos que, quando esperançosos, permitem vislumbrar tantas possibilidades quanto a vastidão do olhar puder preencher. Se partilhados, os horizontes comuns tendem a estabelecer conexões e reconhecimentos reverberantes, com encontros e aprendizados multilaterais. Para tanto, a presença de disposição e senso crítico faz-se fundamental, tornando esse descortinar uma experiência transformadora, de percepção de assimetrias e estreitamento mútuo de laços. 

Nesse aspecto, as expressões artísticas constituem-se canais privilegiados para se pensar realidades – passadas, presentes e futuras. Pois, ao apresentarem tanto indicadores da diversidade histórica, cultural e social quanto elementos para sua compreensão, tais manifestações convidam-nos a experimentar perspectivas alternativas, ficcionais ou não, de maneira a visualizar, muitas vezes, panoramas antes impensados. 

A fim de propiciar semelhantes trocas, refletindo sobre heranças comuns e identidades particulares, o MIRADA– Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas surgiu, há 12 anos, com o objetivo de apresentar experiências cênicas dos países da América Latina, Espanha e de Portugal, favorecendo diálogos entre seus criadores e apresentando ao público algumas de suas produções. Em 2022, após interrupção ocasionada pela pandemia, o evento retorna ao âmbito presencial, compartilhando espetáculos, propondo encontros e atividades formativas. No ano do bicentenário da Independência do Brasil, a sexta edição do MIRADA tem Portugal como país homenageado, ensejando reflexões alinhadas às críticas decoloniais acerca das relações históricas e socioculturais entre os países envolvidos, cujas consequências repercutem até os dias atuais. 

A cidade que abriga o festival, Santos, além do caráter simbólico de uma região portuária, de trânsitos e conexões, integra também a rede de Cidades Criativas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) por sua atuação no setor audiovisual.  Nesse ponto de confluência, que remete a dois pilares do Sesc – as trocas comerciais e os intercâmbios culturais –, a instituição vê na ocupação artística de variados espaços citadinos, em parceria com agentes locais, a oportunidade de, por meio da cultura, reduzir fronteiras e fortalecer diálogos entre povos diversos. 

Tecidos de uma obra aberta

Por Valmir Santos 

Acontecimento social, artístico e cultural, catalisador de narrativas, ideias, estéticas e gentes a mancheias, o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas se viu sobressaltado em seu décimo ano. Como tudo o mais no mundo, naquele 2020, a pandemia interveio e empurrou a sexta edição para agora, 2022. Portanto, a jornada carrega consigo uma dramaturgia falhada em termos de periodicidade bienal. Feito unidades de tempo, espaço e lugar explodidas faz décadas no planeta arte. O irlandês Samuel Beckett (1906-1989) já vaticinava: “Falhar de novo. Falhar melhor”1. Lema conexo ao ensaiar, o repetir ad infinitum na lida de quem dança, atua, performa. 

O fio mais elementar na atual programação vem do calendário. Pois calhou de Portugal, país que seria homenageado dois anos atrás, figurar na boca de cena do MIRADA no mesmo setembro do bicentenário da Independência do Brasil.  

A conjunção involuntária dá margem para a indagação que a escritora e tradutora Marilene Felinto endereçou à Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em julho deste ano: “(…) é preciso fazer a pergunta que não quer calar — a justa homenagem, para a ocasião, não seria à literatura de países africanos de expressão portuguesa? Por que homenagear o colonizador e não a narrativa literária dos povos sacrificados pela colonização?”2, lançou, em artigo no jornal Folha de S.Paulo. 

Afinal, continua Felinto, “os tempos são de intensificação do pensamento pós-colonial, de consolidação de teorias cujas palavras-chaves são decolonização, justiça social, reparação, direitos humanos e civis, incluídos aqui, ainda hoje, o direito dos povos indígenas e negros usurpados e massacrados nos genocídios produzidos pela colonização europeia branca”. 

Sob esse prisma, a jornada cênica que acontece em Santos elenca obras lusas, brasileiras e de outros países da América Latina, do Caribe e da Espanha nos quais a maioria de seus criadores se defrontou com práticas imperialistas e difusoras do patriarcado e de crueldades estruturantes nas mais diversas sociedades.  

Profundo conhecedor do sentimento de ódio subjacente às dominações por classe, raça, gênero e sexualidade, nas casas-grandes de ontem e de hoje, o médico e psicanalista Jurandir Freire Costa esclarece: “Crueldade é o ato ou desejo de fazer sofrer física e moralmente a si ou ao outro. Fazer mal ao outro, humilhando-o ou agredindo sua integridade corpórea, é uma conduta indesejável ou hedionda, conforme o grau da ofensa, mas que pode ser facilmente aceita. Basta desumanizar o próximo. Basta acreditar que ele não é um sujeito moral como ‘nós’ para que a crueldade cometida não seja percebida em seu horror. Ao longo da história, o racismo, o preconceito sexual, a intolerância étnico-religiosa, a indiferença dos opulentos face aos miseráveis etc. mostram com que facilidade podemos desumanizar o ‘diferente’, o ‘inferior’, sem perder uma só noite de sono”3. 

Colonialidade do poder 

Alguns trabalhos do festival ecoam mais diretamente aspectos da colonialidade do poder, conceito cunhado pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (1928-2018) para lembrar que as formas de exploração e racialização de povos não brancos, pelas metrópoles europeias, não desapareceram com a independência de nações latino-americanas. 

Polifonia crítica exercita por obras como “Cosmos”, na qual as atrizes, performers e diretoras Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema, de ascendências cabo-verdiana, portuguesa e angolana, respectivamente, revisitam a mitologia africana para ficcionalizar o nascimento de um novo mundo afeito ao afrofuturismo e atento ao legado de antepassados e à ciência. 

“Brasa”, do artista performativo e visual Tiago Cadete, foca em grupos migratórios que escolheram Portugal ou Brasil para estudar, trabalhar ou simplesmente deixaram o respectivo país por razões políticas. 

Em chave transversal, “Estreito/Estrecho”, fruto da parceria do Teatro Experimental do Porto (TEP) com o Teatro La María, do Chile, cutuca com vara curta a historiografia oficial em torno do navegador português Fernão de Magalhães (1480-1521). Há 502 anos, ele liderou uma expedição espanhola que “descobriu” uma passagem natural no extremo sul da América do Sul, entre os oceanos Atlântico e Pacífico, depois batizada com seu nome, Estreito de Magalhães. 

Já em “Língua Brasileira”, o Coletivo Ultralíricos, de São Paulo, promove um encontro entre o cantor e compositor Tom Zé e o diretor Felipe Hirsch. A proposta é dar a ver e ouvir a epopeia dos povos que formaram o português falado no país, seus mitos e cosmogonias.  

Todavia, a ausência de atuantes indígenas no elenco de seis pessoas foi notada na temporada de estreia na capital, no início do ano. Percepção lacunar amplificada no panorama do festival que tampouco ancora artes do corpo concebidas diretamente por artistas pertencentes a povos originários do Brasil em rituais plenos de teatralidades, danças e ações performativas de per si. 

Coube a uma longeva trupe peruana representar a dimensão autóctone. O Grupo Cultural Yuyachkani proporciona, em “Discurso de Promoción”, uma reflexão a contrapelo das heranças vinculadas a estruturas sociais coloniais. O espetáculo reafirma as tradições dos povos quéchua e aimará ao dissecar a pintura “Proclamación de la Independencia de Perú” (1904), quadro de Juan Lepiani (1864-1932) que idealiza o ato do general argentino José de San Martín (1778-1850) ao emancipar o país da coroa espanhola, em 1821. No primeiro plano da imagem, numa varanda, constam apenas figuras masculinas e brancas da nobreza política e religiosa. Em segundo, abaixo, está o presumido povo, cujos rostos destoam do perfil étnico da população de significativa proporcionalidade andina. 

Como se sabe, aspectos fundacionais de nação incidem diretamente sobre a vida contemporânea de cidadãs e cidadãos. Artista interdisciplinar, escritora e teórica nascida em Lisboa, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, Grada Kilomba afirma que “uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas. Nem permite que seja a responsabilidade, e não a moral, a criar novas configurações de poder e de conhecimento. Só quando se reconfiguram as estruturas de poder é que as muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento. Quem sabe? Quem pode saber? Saber o quê? E o saber de quem?”4, pondera. 

Qualquer ser com um mínimo de informação sabe e sente o quanto a humanidade perdeu o prumo em muitos planos. Estão aí a fome, a concentração de renda, as doenças, as guerras, enfim, mazelas moralmente condenáveis e lucrativas para suas respectivas multinacionais.  

É conhecida a autopercepção do dramaturgo santista Plínio Marcos (1935-1999), que se considerava “um repórter de um tempo mau”. A ponto de intitular uma de suas peças como “Reportagem de um Tempo Mau”, colagem de textos levada ao palco do Teatro de Arena de São Paulo em 1964. Em meados dos anos 1990, ele se queixava de que as misérias humanas seguiam lhe servindo como matéria-prima. “Sempre fui um repórter dos tempos que vivemos”5, declarou o escritor, mais guiado pela realidade do que pela ficção, segundo raciocinou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. 

Vertente documental 

Não sem razão, a maioria das 36 obras do festival adota procedimentos criativos do teatro documental, ou variações dele, para encenar problemas micros e macros que gritam por justiças e são reiteradamente ignorados pelos sistemas econômico (a autofagia do capitalismo?) e político (a imperfeição da democracia?). Moto-contínuo secular do qual instâncias da arte jamais arredaram pé em se contrapor brandindo poéticas de sublevação, de diminuta ou zero ilusão, porém com a sabedoria de que as transformações são entranhadas desde o sujeito para depois se tornarem multidão. 

A amplitude temática mostra-se digna da complexidade de nossa época, que no desenho da curadoria se aproxima de um mural do século XXI que periclita e urge. 

Dessa maneira, impossível não se afetar pela capacidade das criadoras e criadores de equilibrarem-se à beira de abismos. De como as democracias morrem e, por outra, de como nascem discursos pró-ditadura, inclusive as que já morreram e não deitaram. A obsessão pelo apagamento da história, sob pretextos revisionistas e a custo de muita desinformação. O que a descoberta de frases por operários que trabalharam na construção de Brasília, entre os anos 1950 e 1960, diz sobre idear um futuro comum mais justo? Como viver juntos, a despeito do pensar diverso do vizinho de parede-meia ou da desconfiança mútua na fronteira? O que lideranças indígenas, ribeirinhas, defensores ambientais, historiadores e antropólogos sabem, aprendem e compartilham sobre as mudanças climáticas, as crises sanitária e humanitária vistas sob a ótica de desmatamento, de queimadas, de garimpo e caça ilegais no bioma de maior biodiversidade do mundo, a Amazônia?  

O que o desejo move e remove?  

Há dobras para a pregnância da nudez desterritorializada pelo íntimo, o universo infinito do corpo. O ativismo de projetos artísticos inclusivos por meio de pessoas que convivem com síndrome de Down, esquizofrenia ou Alzheimer. A necessidade de reocupação do espaço público cada vez mais excludente. A visibilidade para com o povo periférico e, em particular, o feminismo negro a saudar ancestralidades afro-brasileiras provindas do candomblé e da umbanda. A apropriação da dramaturgia clássica por atuantes protagonistas negros e negras. A bem-bolada junção de partituras da música e da dança que dão numa terceira margem complementar. O tabu da morte desconstruído como signo da vida e acessível às pessoas de todas as idades.  

E tudo, dentro e fora de cena, revitalizado pelo abraço e pelo toque – cuja falta a pandemia também revelou ser aguda e grave. O que se tem para a festa dos sentidos é uma gama de sensibilidades, espantos e sensorialidades que fazem desse corpus MIRADA uma obra aberta. Pede-se entrar sem bater. 

Viagem ao Outro

Quatro anos se passaram desde a última edição do MIRADA, adiado em 2020 por causa da Pandemia de Covid-19, que restringiu a circulação e a aglomeração de pessoas em todo o mundo, desafiando as artes cênicas a permanecerem ativas e encontrarem outras formas e meios de expressão e veiculação. 

Este intervalo singular, com tamanhas consequências nas formas teatrais decantadas a partir de processos de reinvenção e sobrevivência, redescobertas e resiliência fez com que artistas, companhias, diretoras e diretores de teatro se deslocassem para um novo lugar de criação. Peças-filmes e experiências digitais em diferentes plataformas foram criadas e cenas ao vivo foram transmitidas via internet para aqueles que puderam se resguardar em suas casas, garantindo uma copresença temporal de artistas e público, parte fundamental da experiência teatral. 

Com todas as dificuldades que se somaram àquelas já enfrentadas desde antes da pandemia no Brasil, quando editais e programas de fomento e incentivo à produção das artes cênicas diminuíam, o teatro permaneceu vivo e relevante. Filha de deuses que morrem e renascem, a arte do teatro sempre encontra modos de existir. 

O que o festival apresenta agora está marcado pelos tempos complexos em que vivemos e, sem dúvida, foi amplificado e ganhou novas cores e vozes. A interrupção de 2020, mais do que uma ruptura, foi um ponto de parada para vislumbrar novos percursos necessários. 

Desigualdades sociais e econômicas, o legado e implicações do passado colonial e escravista, as relações de alteridades que atravessam histórias pessoais e familiares, com a pandemia ganharam uma lente de aumento entre os palcos e as plateias. Peças e dramaturgias que tocavam em pontos nevrálgicos da realidade nacional e de muitos países foram montadas ou reencenadas e pareceram, muitas vezes, premonitórias. 

Os festivais no mundo todo, impedidos de causar seu principal intento – grandes aglomerações – reinventaram estratégias para manter o trabalho curatorial em dia. Encontros on-line da diversa rede ibero-americana de artes cênicas foram um respiro para meses de restrição de convívio. Com o Mirada não foi diferente. 

Em novembro de 2021 foi realizada a Ocupação Mirada, com a maior parte de suas ações nos formatos digitais. O pensamento de curadoria do festival, que é coletivo e constante desde 2010, pôde ser apresentado em obras e processos que reafirmaram a necessidade de manter o olhar vivo para as diferenças, semelhanças e entrecruzamentos possíveis de desejos, esperanças e contingências dos países ibero-americanos. Alguns encontros proporcionados naquela programação deram frutos que serão colhidos na atual edição do festival e, grupos que apresentaram suas obras, processos ou participaram das atividades formativas no meio digital estarão agora diante do público, em completa presença. Somando-se a isso foi produzido o primeiro volume dos Cadernos de Reflexões sobre as Artes Cênicas na Rede Ibero-americana, em edição trilíngue, reunindo textos abrangentes em seus conteúdos, escritos por artistas e gestores culturais. 

A continuidade do trabalho curatorial com pesquisas e realizações como essas foi fundamental para que se chegasse ao Mirada 2022. A partir de um novo olhar para as obras que tinham sido anteriormente elencadas foi possível perceber diferentes sentidos que elas adquiriram nos anos recentes. A presença de Portugal como país homenageado, no ano do Bicentenário da Independência do Brasil, torna ainda mais significativas as questões concernentes à relação colonial, suas superações ou manutenções, fazendo-se incontornável buscar com mais afinco um viés crítico nos trabalhos selecionados. 

Ao partir da ideia de “Ibero-América”, reunindo países outrora colonizados e colonizadores, ao invés de reafirmar relações de dominação e expropriação, a curadoria busca apresentar expressões culturais dessa região transcontinental para além do resultado do processo colonizatório que definiu uma América Ibérica. 

O festival apresenta obras em que outros países olham para o Brasil e o discutem, trabalhos em que países latino-americanos defrontam-se com seus velhos colonizadores e estes encaram a história à luz de perspectivas não hegemônicas. 

Estão em cena e multiplicadas nas ações formativas questões tais como: a constituição de alteridades no encontro dos povos e dos indivíduos, relações de trabalho inseridas na lógica capitalista de produção, possibilidades e limites das artes cênicas em sua atuação nas transformações sociais e a própria produção ficcional a partir das histórias pessoais ou dos contextos sociais em realidades periféricas. 

São inúmeros temas, presentes nas artes como na vida, atravessados pela necessidade do encantamento e da construção do que é invisível ou impossível enquanto se reproduz a lógica da colonização. Assim, importa ao Mirada trazer ao público dramaturgias, pontos de vista e recontos históricos protagonizados por corpos cujas existências foram sistematicamente apagadas ou subalternizadas e ainda o são, no presente, em formas de opressão outras. 

O Teatro, com sua característica única ao unir o passado – tudo aquilo que está preparado para a realização da cena – com o presente – o que de fato se apresenta diante do público – pode abrir um vórtice para o futuro. Memória, documento, ficção e realidade se fundem diante da importância maior e permanente de um encontro auspicioso entre as pessoas.  

É esse encontro – num tempo que mistura passado, presente e futuro e que mais poderosamente gera transformações, sejam individuais ou coletivas – que o Mirada intenciona realizar em busca de um plano, ou quem sabe um vislumbre, para o atravessamento de uma era de maus tratos que a humanidade impinge a si e ao planeta. 

A viagem vai começar, assegurem seus bilhetes de ida e volta ao outro, – esses sim – os verdadeiramente premiados. 

Campos de conflito – A decolonialidade no centro da formação

Por Giovana Soar, Ivam Cabral e Jhonny Salaberg

A democratização da informação é uma das benesses oriundas de uma complexa somatória que envolve o desenvolvimento tecnológico dos últimos 50 anos, a intensificação da militância por justiça social e a busca por um conhecimento científico genuíno. Se até o século passado teorias racistas ainda encontravam respaldo em falsas conjunturas antropológicas ou biológicas, a razão contemporânea já tem múltiplas ferramentas para desmistificar tais equívocos.  

É evidente que o aumento da disseminação da informação, causado sobretudo pela internet, não necessariamente resulta em conhecimento constituído, e notícias inautênticas ou teses anacrônicas e esdrúxulas continuam a circular por redes digitais ou bocas maliciosas, porém hoje temos, ao menos, o acesso e os dispositivos para rejeitá-las. Mitologias como as do Brasil descoberto ou embustes como a inferioridade étnica podem facilmente ser desconstruídos pela historiografia e pela biologia.  

Nesse sentido, foram fundamentais as quebras de paradigmas causadas pelos estudos pós-coloniais e decoloniais, que com sucesso desmontaram a narrativa evolucionista eurocêntrica. Esse conjunto de teorias que analisa os efeitos políticos, filosóficos e artísticos deixados pelo colonialismo e as mudanças de perspectiva em relação aos povos outrora subalternizados é um fenômeno que ganhou potência a partir dos anos 1980, mas ainda era muito restrito aos círculos acadêmicos, pois a construção de novas epistemologias ainda estava apartada dos movimentos sociais. Se hoje, contudo, esses conhecimentos estão mais popularizados, ainda há muito a ser feito para que sua reverberação realmente alcance todos os cidadãos. 

Assim, trazer Portugal como o país homenageado em 2022 no MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas não significa reforçar subserviências, mas justamente o contrário, porque representa uma oportunidade para o diálogo crítico sobre nossas origens, para que mais pessoas, aqui e lá, as conheçam de fato. Queremos criar campos de conflito construtivos entre essa homenagem e nossa história. A curadoria formativa do festival traz como desafio essa tentativa de decolonizar nossos pensamentos. 

O momento histórico é mais que propício. Os feminismos, os movimentos pretos, as pautas LGBTQIAP+ e as lutas pelos direitos civis dos povos originários estão em evidência, e o que em certos períodos correspondia a engajamentos restritos hoje ecoa por nossa língua, nossos trajes e pela postura de uma imensa parcela da população jovem. As fortes ondas do reacionarismo, no entanto, sejam nas Américas ou na Europa, pautadas na mentira ou na recuperação de mal-entendidos científicos já superados, tentam conter os avanços civilizatórios, por isso precisamos nos manter firmes na defesa da democracia, da polifonia cultural como condição indispensável à prosperidade ética, cognitiva e econômica de nossos povos e da legitimidade das vozes antes silenciadas. 

Brasileiros e portugueses mantêm há séculos uma relação de amor e ódio, admiração e desdém, desejo e repulsa. São sentimentos paradoxais que muitas vezes têm origem em preconceitos bobos. Enxergamos essa vontade imensa por afeto, mas ainda cheia de rancor.   

Precisamos compreender o mundo para além da Europa. Por que nos chamamos América? Por que somos latino-americanos? De onde vem este nome, por que o adotamos e por qual razão ainda o utilizamos? Lembremos que, em 1988, a antropóloga Lélia Gonzalez já problematizava a homenagem – ao invasor Américo Vespúcio – que cunhou o nome de nosso continente, ao propor a categoria semântica e sociocultural da amefricanidade. 

Diante disso, como podemos reabitar nosso mundo? De que maneira podemos decolonizar nosso idioma, nossa língua portuguesa? Como decolonizar nossos conceitos de beleza e saberes? Quem conta as histórias? As histórias contadas aqui, nesta edição do Mirada, nos representam? Que narrativas são essas?  

Não se trata de revisionismo rancoroso, tampouco promover uma perseguição às reversas. Nosso intuito é descobrir outras e outros protagonistas para esses enredos –pois elas e eles são muitas e muitos – e colocar esses temas para dialogar com o público.  

Atualmente, graças às mais diversas militâncias por equidade social, uso de uma linguagem inclusiva e liberdades individuais, tópicos que antes eram tabus ou circunscritos ao universo erudito, agora são debatidos nos pátios dos colégios, nos palcos Brasil afora, no bate-papo cotidiano. Todas as pessoas são capazes de aprender e ensinar algo. O povo português tem muito a aprender com o brasileiro e vice-versa.  

Com maturidade intelectual, temos a chance, por meio de eventos como este, de sistematizar novos conhecimentos e fortalecer todas as nossas culturas e tradições que sejam dignas de serem preservadas de acordo com nosso próprio interesse. As histórias negativas da colonização, da escravidão e dos genocídios devem ficar, com finalidade pedagógica, à primeira vista em nossas prateleiras de livros: como fatos consumados, informações acessíveis para entendermos de onde viemos. Nossa prática, contudo, deve mirar o futuro para a construção coletiva de novas utopias.