Sobre se contar

CRÍTICA

Reflexões e expansões a partir do espetáculo Fuck Me

por Soraya Martins

Quem pode contar sua própria história?

Fuck Me, terceiro trabalho da série Recordar para Vivir, composto por Andrea e Recordar 30 Años para Vivir 65 Minutos, é um espetáculo que, tecido entre as bordas do documental e da ficção, coloca em cena as experiências corporificadas da dramaturga e diretora Marina Otero. É ela quem se narra e/ou escolhe, num jogo imperativo, os corpos que podem representá-la na sua dimensão narcísica. É ela quem determina, radicalmente, falar de si para não ser esquecida.

Quem pode contar sua própria história?

Otero, na impossibilidade de ocupar o centro da cena como uma heroína, vingando-se de tudo e de todos, como sinaliza no texto, deixa seu lugar para ser interpretado por seis performers, assistindo, diria com prazer, seu próprio corpo sendo despido múltiplas vezes a partir do ressentimento e do sofrimento. Como numa espécie de diretora a procura de si mesma, ou melhor, de expor o motivo pelo qual está e se relaciona com mundo, Fuck Me instaura uma estética da dor e da melancolia por meio de um corpo que se faz arquivo vivo de enfermidades, tensões, memórias traumáticas, tombos, hérnias de disco, cirurgias, salas brancas e gélidas de hospital. Um corpo-arquivo que pulsa dor até mesmo daquilo que a memória não registrou.

O espetáculo é um trânsito entre a dor e a representação dessa dor. É um borrar das fronteiras entre a performance e a dança. É um jogo jogado da ficção como modo de concretizar o imaginário e ficcionalizar o real, em que Marina, enquanto personagem também de si mesma, numa performance-dança dentro de uma dança-performance, encontra-se na articulação de como expor & expor seus anseios e desejos, sendo uma bailarina que teve graves problemas físicos, e coreografar suas dores e seus ressentimentos como experiência estética. Um jogo acidental-ficcional como possibilidade remota de se encontrar.

E o que vem depois da exposição da dor?

Como elaborar vias de fuga?

Qual a âncora que precisa ainda ser desenterrada?

*Soraya Martins é crítica, atriz, pesquisadora de teatros e curadora independente. Participou da curadoria do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac (2019,2021 e 2022), e do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua, o FIT-BH (2018). Doutora em literatura, pesquisa as estéticas contemporâneas negras e seus processos de sociabilidade e fabulação em cena