Sobre cair e vibrar

CRÍTICA

Reflexões e expansões a partir do espetáculo Chão.

Por Soraya Martins

O espetáculo Chão, de Marcela Levi e Lucía Russo, traz para o palco a ambivalência, a instabilidade e a repetição como potência e elementos fabuladores de pulsão de vida e liberdade. O pisar no chão-linóleo para os seis performers e cocriadores do espetáculo, Tamires Costa, Alexei Henrique, Ícaro Gaya, Lucas Fonseca, Martim Gueller e Washington Silva, é a possibilidade, sobretudo, de performar, na vibração sísmica de seus corpos-pulsantes, duas ações num primeiro momento opostas, mas radicalmente imbricadas: morrer e renascer.

“Chão-chão-chão-chão-chão”, repetida e simultaneamente, metaforiza destruição e vida/destruição e vida/destruição e vida. Os corpos que sempre e sempre caem no chão, quase anunciado o fim, fazem da queda a possibilidade mesma de (re)criação das formas de ser e estar e dançar o/no mundo. Cair de costas é deixar a escápula tocar no chão, num movimento de “escapulir”, como sinaliza Marcela Levi, que aponta para uma via de fuga através da queda, ou sobretudo por causa dela.

Instabilidade dos corpos.

A queda.

Escapar.

Fugir da destruição.

Movimento-dança de reconhecer a queda. Não desanimar. Levantar. Sacudir a poeira

&

Dar a volta por cima.

A instabilidade dos corpos, aqui, é coreografada a partir de um groove, que, com sua ranhura, combina tensão, peso e leveza, combina pop, funk e soul. É dessa combinação que o som também dança passinho ao som de R&B e dá a ver gestos que instauram fendas no tempo e no espaço, tanto nos corpos dos performers quanto nos corpos de quem assiste, num jogo de fazer reverberar trepidações visíveis e invisíveis com ternura e gozo.

Cair para levantar, levantar para cair. Sempre e mais e sempre. A repetição, em Chão, se faz como uma escolha estética em que a ação de repetir, da ordem da performance, faz surgir algo novo, provocador de tensões, perturbações e criticidades. Aqui, a repetição espetacular desloca o horizonte de expectativa do público, uma vez que faz surgir, para os mesmos gestos e frases, significados novos que vão, paulatinamente, inscrevendo a performance em novos movimentos e desejos de liberdade e leveza.

Chão é sobre abalos sísmicos que liberam energia de vida e recriação para podermos fabular vidas em meio ao caos e à barbarie instaurados no Brasil, desde sempre para os outros (cor)pos, e mais deliberadamente para toda a população nos últimos anos. Chão é sobre, acima de tudo, levantar.

*Soraya Martins é crítica, atriz, pesquisadora de teatros e curadora independente. Participou da curadoria do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac (2019,2021 e 2022), e do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua, o FIT-BH (2018). Doutora em literatura, pesquisa as estéticas contemporâneas negras e seus processos de sociabilidade e fabulação em cena.