por amilton de azevedo
Grupo de Teatro La Trinchera faz da linha de seu Equador ponto de convergências e divergências em “Quimera”, apontando a arte como caminho para alteridades radicais.
Uma linha imaginária, mas de efeitos profundos na realidade contornada, separa dois soldados de lados opostos. Certo dia, em meio à suas rotinas de vigília, se dão conta que ela desapareceu. Territórios e identidades ficam em suspenso no encontro que dá início à Quimera, do Grupo de Teatro La Trinchera. De nítida inspiração na realidade do Equador, que nomeia a linha que divide o mundo em dois, Quimera traz na complexidade do simples uma história que merece ser contada.
Quando o narrador compartilha com o público suas suposições, anuncia-se na forma da encenação sua estrutura: a tradição popular, de tantas semelhanças e diferenças por toda Améfrica Ladina (como nomeia Lélia Gonzalez), é sempre fonte de encantamento para o público que se abre à fábula. Quimera, uma ilusão de país que pouco a pouco torna-se tão pequeno quanto uma linha até desaparecer, expulsa organicamente seus artistas, de modo similar à República imaginada por Platão.
A chegada de artistas mambembes, com seus cantos, truques e magias, puxando seu carrinho tal qual uma anti-Mãe Coragem, aqui atrás das festas e não da guerra para sobreviver, traz a desordem da arte para escancarar as teatralidades do poder que operam em todos os níveis da estrutura social. O que é o militarismo e o “amor” à Pátria se não simulacros e representações pactuadas e reproduzidas por toda uma hierarquia? Aliás, o que é a Pátria, com maiúscula; a ideia de nação e as fronteiras que as contornam?
O desaparecimento da linha mobiliza uma série de eventos, sendo o gatilho para o desenvolvimento dramático de Quimera. Ao mesmo tempo, em torno da fábula apresentada, uma série de camadas de leitura se apresentam ao público por meio das metáforas da encenação. Se a composição cênica do encontro entre os dois soldados parte de uma proposta de espelhamento para efetivamente dividir o palco entre dois pólos, a chegada da dupla de artistas rompe a binariedade da oposição simples de uma lógica do Outro como inimigo. Ao mesmo tempo, rapidamente organiza-se também uma nova linha tensionada, quando os militares percebem a existência de uma real diferença e irmanam-se em suas semelhanças.
Linhas impostas por decreto não são propositoras de uma alteridade radical; pelo contrário: historicamente, traços desenhados em mapas foram causas de guerras, extermínios e disputas das mais diversas ordens. Ao redor do mundo – e neste caso, talvez não apenas do Sul global – identidades culturais foram divididas a ferro, fogo e canetas, fazendo da ideia de nação uma abstração tantas vezes absurda.
Aos dois lados da fronteira no palco de Quimera, homens iguais se veem como inimigos. Percebem-se iguais quando verdadeiramente diante se colocam um diante do outro. Enquanto essa distância diminui, outra aumenta; e leva tempo até que eles se deem conta de que também habitam Quimera, essa ilusão que para existir é necessário imaginá-la.
Há que se diferenciar os usos da imaginação. Fronteiras foram imaginadas, mas não são imaginárias – e não faltam cadáveres para sermos cotidianamente lembrados disso: da crise dos refugiados às guerras, passando por imigrações ilegais e o tráfico internacional de drogas, uma linha em um mapa é tão real quanto uma coletividade, representada por um Estado a faz ser.
Por outro lado, é através de um exercício de imaginação radical, que nasce da subjetividade de cada um a partir de quais são as ilusões que sustentam as tantas Quimeras que cabem em um mesmo país e se dirige à uma construção não apenas coletiva, mas coletivizante, que se pode atingir uma compreensão profunda da diferença. Uma alteridade também radical, que reconhece a diferença como motriz das sociedades contemporâneas. Não somos todos iguais, basta desenrolar o novelo da linha da memória – mundial, nacional, cultural, individual – para perceber isso.
A radicalidade da diferença permite que o olhar em direção ao outro o perceba em toda a sua complexidade. Como diz Ailton Krenak, somos constelações. O Grupo de Teatro La Trinchera faz de sua Quimera utopia possível, ainda que distante. Há de emergir o reconhecimento. É na potência da arte, em suas múltiplas manifestações, que linhas traçadas retas podem fazer curvas e espiralar por tempos e territórios, fazendo de fronteiras encruzilhadas; espaço de produção de mundos possíveis porque imaginados. Há de se fazer chover.
* amilton de azevedo é crítico e professor de teatro. Mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena, onde lecionou. Criou a plataforma ruína acesa, de crítica teatral, em 2017. Escreveu para a Folha de S. Paulo e para diversos festivais. É membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro.