O recurso

CRÍTICA

Crítica de Hamlet, de Chela de Ferrari

Por Daniele Avila Small

Uma pessoa que frequenta teatro regularmente pode pensar que já conhece Hamlet. Uma pessoa que frequenta teatro regularmente há décadas pode dizer que já viu muitos Hamlets. Essa pessoa também pode pensar que tudo já foi dito e elaborado sobre essa peça, inclusive no cinema. É possível pensar que a mais conhecida das obras de Shakespeare é sobre um príncipe melancólico, sobre um reino em que há algo de podre (uma redundância), sobre disputas de poder, sobre amor, traição, engano e ambição. Sobre o fardo de carregar um legado. Sobre não ter certeza de qual é o seu papel no mundo. Sobre estar só e não poder confiar em (quase) ninguém. Sobre tudo isso junto. Mas eu acho mesmo que Hamlet é uma peça sobre o teatro – e não estou sozinha nessa, obviamente.

A montagem encenada pela diretora peruana Chela de Ferrari (com a equipe formada por Claudia Tangoa, Jonathan Oliveros e Luis Alberto León), que se apresenta neste mês de setembro de 2022 no MIRADA e em seguida no Sesc Consolação em São Paulo, é um prato cheio para pensarmos sobre o papel do teatro nessa tragédia de Shakespeare, que nos fala, entre tantas coisas, da teatralidade do mundo, das encenações da política, das dramaturgias sutis das violências cotidianas e da performatividade dos papeis que as pessoas encarnam no seu dia a dia. O que provocamos no mundo ao sermos quem somos? Que cenas desencadeamos quando assumimos ou quando nos recusamos a desempenhar determinados papeis? Se mudarmos radicalmente de personagem nas nossas vidas (como Hamlet, que passa a se fingir de louco), o que acontece à nossa volta?

Essas e outras perguntas que a peça nos apresenta não estão adormecidas, descansando nas bibliotecas da História. Elas sempre precisam ser refeitas, precisam ser feitas de outras maneiras, a partir de outros lugares de fala, de outras épocas, com vozes frescas de curiosidade e franqueza. Um dos aspectos que torna esse Hamlet incontornável é a seriedade com a qual o elenco, formado por artistas com Síndrome de Down, se faz as perguntas mais nucleares da peça, bem como a sinceridade das suas respostas.

Com elenco formado por cinco atores (Álvaro Toledo, Jaime Cruz, Lucas Demarchi, Manuel Garcia e Octavio Bernaza) e três atrizes (Cristina León Barandiarán, Diana Gutierrez e Ximena Rodriguez), essa montagem de Hamlet produzida pelo Teatro La Plaza nos apresenta a visão, o projeto, o pensamento desses artistas, sobre a obra, sobre o mundo em que vivem e a relação entre essas duas instâncias. Dessa triangulação, é difícil que a plateia saia ilesa: nossa imagem está ali, à mostra, e nela podemos ver múltiplas camadas. Ora nos reconhecemos como aquilo que sobra dos nossos sonhos irrealizáveis, ora nos vemos como a continuidade submissa de projetos que não são nossos, ora nos identificamos com a insurreição indignada, ora estamos festejando a amizade, ora somos cretinos usurpadores, ora vemos beleza na morte. Mas somos, o tempo inteiro, destronados da nossa ilusão de superioridade neurotípica.

Há um momento em que um dos atores, Octavio Bernaza, diante de uma plateia cheia que fazia silêncio absoluto para escutá-lo, nos fala da insuficiência das palavras e da incapacidade humana de se fazer entender, da frustração imensa que há entre querer gritar e só conseguir gaguejar, balbuciar, às vezes nem isso. É possível que façamos uma analogia entre esse conhecido trecho da peça e as eventuais dificuldades com a fala que pessoas com Down podem ter. Mas eu acho que eu nunca vi nenhum ator dizer esse texto tão bem. Ele não está falando da deficiência dele, mas da nossa. 

Ao final dessa cena, Hamlet entende que, sozinho, ele não vai conseguir comunicar o que sabe. E que as ferramentas do cotidiano não podem ajudá-lo. Para denunciar e comprovar que seu tio assassinou seu pai para usurpar o trono e se casar com sua mãe, ele precisa da linguagem simbólica, da elaboração prévia, demorada e paciente do teatro. Ele precisa da poética da encenação teatral para dar a ver o que deveria estar completamente visível. Esse é seu último recurso. O teatro.  

Então podemos ver o teatro para além da sua condição de modalidade artística, embora estejamos, sem sombra de dúvida, diante de uma obra de arte. O teatro também pode ser como uma episteme, um modo de conhecer o mundo e de conhecer-se a si mesmo. Um modo de investigar os lugares que podemos ocupar. Sem garantias. Como disseram os artistas sobre a proposta da conversa depois da peça, “não prometemos nada”. Melhor assim, não é? Ninguém tem que “entregar” nada. No entanto, os Hamlets mostram como o teatro pode ser um meio de provocar a revelação do assassino que há em nós. Não porque eles nos apontam, mas porque nós nos vemos. Quando queremos ver, vemos.

Não quero, com isso, defender que o teatro pode mudar o mundo, que os artistas devem fazer suas peças para ensinar coisas para as pessoas e mostrar para elas alguma suposta verdade sobre o bem e o mal. O que me interessa aqui é perceber, mais uma vez, que a poética do teatro é forjada com muito trabalho e quando é preciso falar sobre coisas realmente complexas, como a dimensão imprescindível da diversidade cognitiva na sociedade em que vivemos, por exemplo, precisamos de tempo para preparar, elaborar, escutar e digerir. Aí o teatro é, também, um excelente recurso. E quando o teatro escuta e acolhe vozes que não costumam encontrar ouvidos atentos, outros mundos se abrem.

Na conversa depois da peça, uma menina na plateia parecia estar com muita vontade de falar. Ela tinha uma pergunta a fazer, mas ensaiava o gesto de pedir o microfone e logo recolhia a mão. Enfim, o microfone chegou até ela. Lutando contra a timidez e com a ajuda da voz da mãe, veio a pergunta para Jaime Cruz, que em determinado momento do espetáculo dá um grito muito forte, implicado pelo fardo do legado dos inúmeros “grandes atores” que um dia deixaram a sua marca fazendo esse personagem. A menina queria saber se ele tinha gritado de verdade. As crianças sabem fazer perguntas…

Precisamos de espaço para gritar de verdade. Mas vivemos num mundo que nos constrange (desde crianças, especialmente desde meninas, ou ainda se não temos as aparências consideradas padrão, se não somos brancos, se temos alguma espécie de deficiência ou, mais ainda, se somos cognitivamente divergentes) a não tomar a palavra, a não fazer as nossas perguntas em voz alta. E então passamos a vida toda nos esforçando para performar normalidade. Mas, e se a nossa ideia de normalidade cognitiva for a branquitude da inteligência? Queremos mesmo continuar atuando nessa encenação?

*Daniele Avila Small é artista de teatro, crítica e curadora. Idealizadora e editora da revista Questão de Crítica desde 2008, é autora do livro O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada (7Letras, 2015) e Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO.