A estrutura de andaimes é composta de 22 quadrados, ou 22 celas, algumas gradeadas, muradas como becos, outras abertas a escapes e fugas. Um organismo que se ergue sem limites ou funções, sem órgãos, onde não podemos determinar entradas e saídas, mas somente o movimento para todos os lados, sem uma direção ou sentido.
Escrever é limitar e por isso enumerei e defini 22 pedaços, que na realidade se quadruplicam e se fazem 44, crescendo para o alto e se erguendo em dois andares, se montando como torres, prisão ou observatórios que se acoplam ao teto de outra arquitetura. Nesta tanta tantã geometria e sua precisão – necessária – se acumulam ideias, coisas, palavras, todo o excesso de quaisquer pensamentos, que vão além da bricolagem, existem e avançam em um ritmo e composição cumulativa, onde as fronteiras do sabido se desmancham.
Espelho do excesso do próprio pensar, e seu fluxo não decodificado, seu gaguejar, seus impensáveis que sempre vem à tona. É impossível neste lugar a reflexão comportada, pois não existe uma entrada ou saída, e qualquer direção permite uma leitura, ou uma desleitura ou uma explicação, um lugar para se perder na balbúrdia interminável do funcionamento do pensamento neste mundo que vai se derruindo pelo excesso de tudo.
Aqui não existe um todo, mas somente fragmentos, nomeados mas sem a determinação de sua origem. Não sabemos e nem dizemos em quais obras as tantas ideias aqui espalhadas estão fincadas, mas sabemos de seus pensadores, corpos em fluxos que neste theatrum se acoplaram. As nacionalidades se dissolveram e só importa o nome, o texto e a localização e suas acoplagens instáveis neste corpus e mundi.
Sua abertura é permissiva, desejante da imaginação e conexão de cada um. Este teatro, corpo e mundo não importa e nem impõe um desejo ou uma lógica, mas implica e ricocheteia outras conjunções/conjurações. A participação, o que vale para viver este lugar é a liberdade do gaguejar e desconhecer, a dispensa de nosso mundo construído seus parâmetros e normas.
Artaud não entrou neste panóptico para ser analisado e pensado como objeto de estudo e conhecimento, como lugar de aprofundamento de sua obra, mas como potência para desagregar hegemonias e regras do bom pensar, para detonar a conjunção de “penso com coerência e por isso existo”. Ele está aqui como flecha lançada em várias direções, tentando alcançar, chispa para alvejar o impensável. Artaud aqui presente é aquele do outro lado, das sombras, da desrazão, do antes do destino do final do voo da flecha, movimento entre a tensão do arco e a resistência do ar.
Querer que cada um seja um arco na sua força tensionada, e cada olhar, ouvido, tato, gesto fosse uma flecha atirada por este mundo paralelo, atravessando este corpo e vislumbrando como alvo este outro mundo. Possível? Sem possível.
As matérias do que se compõem este lugar este emaranhado não são coisas bem comportadas e construídas com o rigor das mercadorias e nem do que pode ser pensado como obra de arte, ideia estabelecida a partir do séc XVI na sua fúria colonizadora daqueles tempos e vigentes até hoje. O que se concretiza aqui não são obras mas um processo de desconstrução e desmonte dessa ideia do acabado e imposto, da hegemonia de uma ideia ou projeto de arte. As composições que se espalham não são obras, mas engates, roldanas, desobras, ou como Artaud fala são fecalidades, poesias da merda, peidos, cagadas, obras (nesse sentido popular e da língua baixa, negada e renegada pelo meio artístico).
Nada aqui é comportado, embalado e criado por um especialista, mas feito em comum com os muitos que nela se engajaram, com os erros, acasos, pensares e a potência deste torvelinho. Todos aqui inventam e se misturam a esta composição, a esta digestão, a este cansaço e desistência de um pensar, seus limites e regras de um conceito ou de uma linha curatorial. A imaginação qualidade e falha de cada um é o que faz girar esse mecanismo, o que faz andar este lugar, o que digere e defeca esta obra.
Não podemos dizer que as coisas estão aqui embaralhadas, pois um baralho é sempre composto de uma série de cartas com seus valores limitados e cujas composições são também mensuráveis. Neste teatro, corpo e mundo são tantas as combinações e invenções, que a ideia do baralho também se desmancha e suas regras não valem aqui. Podemos falar de um baralho de tarô e suas mancias, suas imaginações implícitas, amplificadas as ilimitadas de cada carta, de cada arcano que se concretiza como interpretação ou imaginação .
Imaginar é o ato de formar uma imagem, singular brotando em cada um, na sua relação com o fora, com o outro, na sua composição ou recusa a este encontro entre o fora e o dentro. Este lugar que insisto em não chamar de exposição, instalação mas sim de campo de forças, nomeado por se constituir neste sem começo sem meio, sem fim, na infinitude como uma qualidade.