Crítica de Discurso de promoción, do Grupo Cultural Yuyachkani
Por Daniele Avila Small
Discurso de promoción, espetáculo criado em 2017 pelo Grupo Cultural Yuyachkani, companhia de teatro atuante no Peru há mais de 50 anos, tem como ponto de partida a proposta de uma revisão crítica das representações dominantes da história do seu país. Diante das comemorações dos duzentos anos de independência da coroa espanhola, o grupo critica a ausência de representatividade dos grupos sociais que realmente lutaram pela emancipação da região. Para isso, eles tomam como paradigma uma obra do pintor Juan Lepiani, em que se vêm apenas homens, brancos e de classes privilegiadas, tendo o povo, uma massa informe no quadro, como mero pano de fundo desse momento histórico.
A relevância social do projeto é inegável, bem como a imensa importância da história do grupo no teatro peruano e latino-americano. A presença do Yuyachkani no Mirada e em outros festivais no Brasil é motivo de celebração. Tendo assistido à apresentação feita no dia 16 de setembro, poucos dias depois das sombrias comemorações do 7 de setembro de 2022 no Brasil, proponho aqui algumas problematizações, considerando que o intercâmbio entre artistas de diferentes nacionalidades e de diferentes gerações passa também pelos estranhamentos e distâncias.
Antes de mais nada, devo dizer que me interesso bastante pelo que as estratégias de elaboração simbólica podem fazer com as imagens e narrativas da história, pelo modo como as obras de arte podem movimentar nossos afetos e nossos modos de pensar o mundo em que vivemos. Me interesso especialmente por peças que se propõem a fazer crítica historiográfica e tenho pesquisado esse tema há alguns anos. Conto isso para que os leitores e leitoras dessa crítica saibam que meus questionamentos não se dirigem apenas a essa peça, mas a um amplo espectro de uma cultura de teatro em que a peça está inserida.
Tenho a impressão de que a peça oscila entre o projeto de reposicionar uma narrativa histórica e o risco de reforçar as mesmas imagens que deseja criticar. Um dos recursos de encenação que a peça adota é o da ilustração cênica das narrativas. A cada denúncia que a dramaturgia faz, o elenco cria imagens correspondentes, com uma intensa profusão de materiais, vídeos, objetos, canções, textos, composições criadas com os corpos, figurinos etc. Aqui, a quantidade, a rapidez e a intensidade aparecem como valores da peça, como características colocadas até mesmo em um lugar de virtuosismo de execução. A linguagem próxima à dos jogos teatrais pode ao mesmo tempo ser convidativa e sedutora para alguns espectadores mais familiarizados com os vocabulários internos das práticas do teatro, mas a mesma linguagem pode soar endógena para outros, que não têm muita relação com o dia a dia da criação artística.
Para além disso, no entanto, dois riscos se apresentam, para mim, nessa proposta.
Um deles é o risco da superficialidade, que está entrelaçado com o desejo de totalidade evidente em uma frase repetida algumas vezes na peça, algo como “para entender o país é preciso entender o mundo”. O desejo de falar do maior número possível de questões, de mostrar várias composições sobre a mesma questão, enfim, o desejo de fazer tudo muito, e ainda com celeridade, pode vir a plasmar as questões propostas em uma superfície barroca em que alguns de nós, espectadores, não conseguimos entrar. É como se a peça fosse um extenso jornal do qual só conseguimos ler as manchetes e alguns parágrafos destacados na diagramação. Fiquei pensando que, para compreender o mundo, precisaríamos diminuí-lo demais…
O outro risco é o do voyerismo na denúncia. Muitas vezes, quando o teatro quer denunciar uma opressão, os diretores (não apenas, mas especialmente os homens) costumam achar que reencenar as opressões é uma boa ideia. Quando o assunto é violência contra a mulher, por exemplo, as encenações parecem não ter pudor de dispor de modo excessivamente literal dos corpos femininos das atrizes. Então, da plateia, temos que assistir, mais uma vez, a cenas como a de uma jovem sendo arrastada pelos cabelos, ou a de uma mulher exibida nua em uma vitrine, como uma mercadoria, ou como uma matéria inerte disponível para uso, um cadáver. Um homem vem nos perguntar a nossa idade e depois faz gestos e profere frases machistas e de teor pedófilo. Haveria um prazer em encenar isso? Imaginemos um abusador na plateia nesse momento, por exemplo. Ele vai fazer uma autocrítica ou só vai ficar excitado mesmo? Quem ganha e o que se conquista com a reperformance da violência contra o corpo da mulher?
Para além desse incômodo, considero importante observar que o excesso de espectadores em um espaço visivelmente menor que o necessário para o bom funcionamento do espetáculo atrapalhou bastante a minha experiência da peça. Há um pensamento em determinada cultura de teatro de que se a peça acontece num espaço multiuso e os espectadores não têm lugar fixo, então o público estaria livre para assistir como quiser e pensar o que quiser; enquanto se uma peça acontece em um espaço que propõe uma relação frontal com o público e este fica sentado em cadeiras fixas, nesse caso o teatro estaria confinando os espectadores em uma recepção “passiva”. Essa poderia ser uma longa discussão, mas o que acho importante compartilhar é que, na minha experiência particular da peça, a liberdade de movimento acabou me colocando à distância. Na disputa por um lugar em que eu pudesse ver melhor, acabei cedendo espaço a espectadores com atitudes mais incisivas e, quando me dei conta, estava praticamente fora do espaço da cena. Entre o desconforto da dor nos quadris por tentar ficar sentada no chão e o cansaço das pernas por ficar cerca de duas horas em pé, sem conseguir ler as legendas (que em diversos momentos me fizeram falta), muitas vezes perdi a conexão com a cena.
Vale pensar que proporcionar uma melhor a experiência para menos espectadores pode valer mais a pena do que encher o espaço de tal modo que alguns não consigam desfrutar do que a peça tem a oferecer.
Penso, no entanto, que a distância que se estabeleceu na minha relação com a peça também se deu por outro tipo de cansaço. O cansaço da imagem de América Latina como território de opressão e sofrimento. A violência generalizada já está presente demais no cotidiano de quem vive aqui. Por mais que seja compreensível que nós, artistas de teatro, nos sintamos compelidos a denunciar e lutar, em cena, contra esse estado de coisas, me pergunto: se deixarmos que essas violências todas se imponham no nosso imaginário a ponto de protagonizar as nossas criações, isso não é uma vitória que concedemos a “eles”? Permitimos mesmo que, para além de ser nossos algozes, eles também sejam nossos temas? Que se infiltrem nos processos criativos, nas obras que sonhamos realizar, no espaço inventivo da nossa imaginação? Por quê?
Encerro aqui essa breve reflexão, feita no calor da hora, não apenas com essas perguntas e comentários um tanto implicantes, mas também com a satisfação de poder ter assistido ao vivo a um espetáculo do Yuyachkani. Uma experiência complexa de fruição, em que vemos problemas e ficamos desconfortáveis, pode ser mais relevante e mexer mais profundamente com a gente do que uma peça da qual simplesmente gostamos. Essa peça vai ficar no meu repertório, aberta a se transformar na minha memória, e movimentando, na minha cultura de teatro, as perguntas provocadas por ela.
*Daniele Avila Small é artista de teatro, crítica e curadora. Idealizadora e editora da revista Questão de Crítica desde 2008, é autora do livro O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada (7Letras, 2015) e Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO.