por amilton de azevedo
Em “Estreito/Estrecho”, portugueses e chilenos provocam reflexões sobre o presente enquanto irmanam-se em uma autocrítica sarcástica dos passados longínquos e recentes de seus países.
Magalhães/Magallanes. A narrativa do navegador português que, em 1520, foi o primeiro europeu a atravessar a passagem entre a Terra do Fogo, o cabo Horn e o continente sulamericano que hoje leva seu nome pode ser contada de diferentes modos em distintas línguas. Estreito/Estrecho parte de duas visões, em tese circunscritas pelas nacionalidades dos artistas-criadores: o Teatro Experimental do Porto (TEP), de Portugal, e o Teatro La María, do Chile, dividem a direção artística e a cena nesta espécie de resgate sarcástico da trajetória de Fernão de Magalhães.
Entre legítimo descobridor e aventureiro esfarrapado, a obra faz da vida e dos feitos de Magalhães um impulso para pensar não necessariamente a história, mas sim as relações e fricções – afetivas, profissionais, culturais – contemporâneas possíveis entre europeus e latinoamericanos. Aliás, entre portugueses e chilenos: identidades nacionais já são instáveis o suficiente. Neste caso, especificamente, pesa ainda o fato de um dos intérpretes do TEP ser brasileiro – circunstância bem aproveitada pela obra, visto que, entre os portugueses, se irmana na visão europeizada do Chile.
É em uma paródia entre o naturalismo e a performatividade que Estreito/Estrecho se inicia. No vídeo exibido, os três artistas de cada grupo estão dentro de veículos em seus países, como que pouco antes de se encontrarem para o desenvolvimento do projeto. Destilam-se preconceitos mútuos, entre o senso comum e o absurdo, em torno das impressões que cada trio tem do outro país. Há algo de engraçado no início e em momentos pontuais; na insistência de seguir demonstrando o nível de ignorância, simultaneamente surreal e crível, a obra também silencia o riso.
Na sátira levada à cena por TEP e Teatro La María, o humor provocativo parece sempre levar a um constrangimento diante do que se vê. Entre ironias finas e o deboche total e absoluto, Estreito/Estrecho encontra no esgarçamento desta linguagem a possibilidade de uma autocrítica não só às histórias de Portugal e Chile, desde o colonialismo do primeiro ao extermínio de povos originários do segundo, mas aos modos contemporâneos de propor reparações e lidar com os efeitos destes passados.
Não se trata de observar a história à contrapêlo: nas cenas dramáticas – sempre tingidas com muitos tons acima da realidade – a representação das navegações até desenha aqueles grandes heróis como ignorantes esfarrapados e esfomeados, aventureiros quase sempre à beira da morte e diante do inevitável fracasso. Mas, apresentadas após o prólogo em vídeo e a primeira cena da conferência entre os representantes de Portugal e Chile, parecem servir também como tentativas de desenvolvimento da relação entre os dois países e as distintas visões do período.
A seriedade na abordagem de certos materiais pode sugerir um teatro documental, mas o enquadramento da ficção está por todo Estreito/Estrecho. Ao propor que outra pessoa teria descoberto o Estreito de Magalhães, os portugueses do TEP evocam um certo Diogo Alves. Provavelmente não por acaso: trata-se do mesmo nome de um serial killer galego radicado em Lisboa no século XIX, conhecido como o Assassino do Aqueduto das Águas Livres, cuja cabeça decepada é guardada até hoje na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Pela relação de Fernão com a coroa espanhola, soa como uma provocação macabra e sarcástica.
Farpas e ataques são lançados para todos os lados; críticas e autocríticas a esses eus e Outro enquanto representações de uma nação permeiam toda a obra, e o registro irônico garante uma implicação contínua de todo elenco – ao mesmo tempo que, de certo modo, o distanciamento proporcionado por tal escolha também os protege.
Nesse sentido, há um momento de maior exposição, quando um vídeo apresenta a imagem do elenco caracterizado com pinturas selk’nam, população originária da Terra do Fogo exterminada entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX a partir de uma política de ocupação e desenvolvimento do território proposta por Chile e Argentina, contrapondo esse registro às reações de um programa de televisão japonesa diante de célebres fotografias deste povo. Qual a distância entre a ironia e o desrespeito?
Infindáveis debates em torno das relações entre Norte e Sul global se desdobram em Estreito/Estrecho. Trata-se da formalização de um conflito onde, guardadas as devidas proporções, não há de fato inocentes. Talvez seja possível contar nos dedos (se é que existem) os países que não pintaram sua história com sangue; seja dos seus, entre populações originárias e subalternizadas, seja dos outros, em guerras e no incessante processo colonizatório.
Assim como o embate parece uma equação impossível de solucionar, especialmente quando compreendido em suas tantas complexidades, também é um desafio construir – seja no consenso ou no dissenso – um desfecho. Estreito/Estrecho, ao mesmo tempo em que critica a ideia de que existam soluções fáceis, mantém sua atmosfera (auto)satírica na composição da cena final, espécie de deus ex machina com o roteiro que chega de fora. Estado, governo, instituições, cidadãos, artistas: se a história se repete duas vezes, primeiro como tragédia e então como farsa, talvez seja mesmo um caminho reinventá-la como deboche.
amilton de azevedo é crítico e professor de teatro. Mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena, onde lecionou. Criou a plataforma ruína acesa, de crítica teatral, em 2017. Escreveu para a Folha de S. Paulo e para diversos festivais. É membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro.