por amilton de azevedo*
Em “Viagem a Portugal, última paragem ou o que nós andámos para aqui chegar”, o Teatro do Vestido faz dos usos do passado impulso para compreender a memória como desejo de futuro.
Quando o Teatro do Vestido trouxe para a edição de 2018 do Mirada Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, cada rosto apresentado por Joana Craveiro ganhava um nome e uma história, cada manchete se contextualizava e cada documento se vivificava em gestos e palavras. O público era conduzido afetiva e didaticamente por episódios da história de Portugal, acompanhando também as memórias de Craveiro. Agora, em sua Viagem a Portugal, última paragem ou o que nós andámos para aqui chegar, enquanto materiais documentais da encenadora seguem atravessando a cena, a profusão de imagens torna-se quase um bombardeio a desnortear aquelas e aqueles sem as referências da história do país.
No Guia de leitura do espectáculo oferecido aos espectadores, o Teatro do Vestido situa cada um dos excertos apresentados e, em certos momentos, também versa em torno das mobilizações do grupo nas escolhas de levá-los à cena. São crises, tragédias, rupturas, compartilhamentos. A fragmentação pós-moderna alinha-se ao que parece emergir como uma intenção pós-colonialista de, considerando o papel de Portugal na colonização de África e de América, possibilitar a concepção de novos caminhos a serem traçados.
Viagem a Portugal traz em seu título sua intenção: fronteiras, culturas e narrativas históricas são debatidas no diálogo que costura uma teia de referências simbólicas que não se apresentam na totalidade, mas como paisagens vistas da janela de um carro numa estrada. A neblina da familiaridade citada pelo Teatro do Vestido, no palco do Sesc Santos, pode parecer já dissipada pelos tempos que correm no Sul global. Nestes tristes trópicos, talvez seja mais difícil deixar para trás o caminho que se apaga no caminhar.
O olhar é lançado sobre a fundação, manutenção, transformação e (im)possibilidade de constituição de uma identidade nacional. Neste sentido, ainda que muito conectada ao contexto português, há espaço para as conexões entre as realidades do país homenageado desta edição do Mirada e o Brasil. Os procedimentos cênicos adotados fazem de Viagem a Portugal um ensaio – tomando aqui a palavra em sua acepção teatral mas fundamentalmente enquanto gênero literário.
Trata-se de uma verdadeira jornada entre símbolos, pessoas, geografias e tempos, onde navegam citações da história, da arte e da vida. Cada excerto se coloca enquanto exercício de imaginação – mais ou menos radical – em torno do que fazer daqui para frente. Não se pode esquecer das muitas dores, sofridas ou infligidas, pelo estado-nação; e o Teatro do Vestido joga com os usos do passado para compreender a potência da memória enquanto desejo de futuro.
Pois, talvez, seja disso que se trata: de onde vieram (viemos?) e para onde irão (iremos?). Documento, objeto, poesia, realidade, ficção. A materialidade da pesquisa do Teatro do Vestido se apresenta naquilo que continuamente compõe a cena, ainda que muito possa permanecer distante do público – especialmente daquele que não leu o Guia de leitura do espectáculo, onde encontram-se todas (ou quase todas) as menções vistas na obra. Não se trata de demérito da encenação, visto que nem tudo deve ser apreendido em sua totalidade. Nesse sentido, ainda que a narrativa de viagem, aqui formalizada como espécie de ensaio livre, componha suas cenas como paisagens poético-reflexivas a serem apreciadas em movimento, há o risco de certo desconforto na fruição, que pode se sentir despreparada e desprotegida diante de um excesso de informações pouco exploradas diretamente.
Quando o espetáculo lança a questão o que poderiam fazer? após anunciar a rubrica de que os atores limpam a cena – ou quando um ator comenta que agora estão varrendo os corpos – uma autocrítica explícita é também propulsora de outras problemáticas implícitas: há muito a se fazer, possivelmente ainda mais quando se mira a cena a partir de uma plateia brasileira. E enquanto Viagem a Portugal resvala na ironia, não perde de vista a seriedade de seu discurso, alternando leveza e densidade.
Na utilização de construções e bonecos de Lego, o Teatro do Vestido reforça a teatralidade da encenação, encontrando formas delicadas de lançar luz a diversos horrores. Corpos decapitados do jogo de montar se acumulam em diversas cenas, sempre amplificados pelo uso da câmera, uma interessante mediadora entre ação e fruição. As luvas usadas pelos intérpretes podem parecer em um primeiro momento a de médicos, mas logo se assemelham mais às de restauradores e museólogos na lida com artefatos antigos e preciosos. É nesta articulação entre histórias pessoais e coletividades sociais que se pode pensar a construção de identidades.
Assim, o Lego efetiva-se enquanto possibilidade de materialização deste mundo, ainda que mínimo, talvez com mais futuro do que passado, mais sob controle da imaginação dos artistas; mais leve. Já em seus últimos excertos, uma sequência de signos e metáforas extremamente potentes se apresenta: ali está o cravo, nevrálgico para a Portugal do século XX. Pouco depois dele, a semente e o broto verde que cresce em meio ao tronco marrom. Mas o que significa a poda que gerou uma nova árvore? O que se poda? O que se esquece; o que se deixa para trás? As personagens, estando no meio da vida, sabem que há muito a se fazer, a se descobrir, a se caminhar. Mas é difícil apontar os caminhos não desbravados. Que a viagem siga por muitas e infindáveis paragens.
* amilton de azevedo é crítico e professor de teatro. Mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena, onde lecionou. Criou a plataforma ruína acesa, de crítica teatral, em 2017. Escreveu para a Folha de S. Paulo e para diversos festivais. É membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro.